segunda-feira, 26 de março de 2012

Jogo de Cena / Eduardo Coutinho

Cada história contada tem um elemento ficcional muito forte. É impossível não ter um elemento ficcional.


A primeira mulher a ser entrevistada no filme de Eduardo Coutinho é uma jovem que começa narrando sobre a vontade que ela sempre teve de ser atriz. Mas a maneira como a jovem, atriz, personagem ou entrevistada, projeta sua voz para o diretor que está atrás da câmera é uma forma muito próxima da interpretação teatral, a forma que alguns diriam ser exagerada, forçada para ser ouvida. Nessa primeira sequência (julgando que seja possível identificar as unidades fílmicas em Jogo de Cena) já somos apresentado a esse jogo proposto no título.

Um anúncio em um jornal informava a convocação de mulheres para contarem suas histórias de vida. Não se discute o que motivou essas mulheres a se abrirem em frente a câmera, mas após passarem por um processo de seleção, recontaram a história na frente do diretor e de uma câmera, sendo interrompidas por perguntas e indagações frequentes. Todos esses “fragmentos de realidade” foram registrados pela câmera que pouco se manifesta, variando entre closes e plano médio, as vezes se afastando suficientemente para indicar a figura ali presente do diretor e outras para acompanhar as mulheres até a cadeira armada sobre um palco de um teatro e frente a essa câmera.

O passo seguinte foi o convite às atrizes que viessem ao mesmo lugar onde foram feitas as entrevistas e que essas atrizes relessem as histórias reais contadas, sem muita interferência do diretor. Daqueles “fragmentos de realidade” passamos agora ao universo da encenação e, talvez, não especificamente a encenação cinematográfica ou teatral, mas ao processo de transmutação do que se diz real para a dramaturgia.

Esse efeito é nítido logo no começo do filme, enquanto a estrutura permite identificarmos quem está contanto um fato de sua vida e quem o está interpretando. Isso se torna claro não somente por reconhecemos com facilidade quem é atriz ou não, mas temos indícios, ao compararmos duas pessoas que contam a mesma história, quem passou pelo processo de leitura e preparação prévia do texto e quem supostamente não.

No decorrer do filme essa estrutura quase didática vai se perdendo, como a história da mulher que teve relações sexuais em um ponto de ônibus e engravidou. Pelos trejeitos, pela forma de falar, pela vestimenta e até mesmo pelo preconceito de nós espectadores, logo julgamos e temos quase certeza que aquela quem nos conta está história é a real pessoa que a vivenciou. Não temos uma atriz que ao longo dessa narrativa contraponha nossa certeza, mas logo somos surpreendidos pela própria mulher que olha para a câmera e diz “e foi isso que ela disse”.

Nesse momento do filme não estamos mais pisando em um chão firme e nos permitindo fazer afirmações. A realidade e a ficção já se fundiram e o didatismo já não está mais presente para nos auxiliar no entendimento do todo. E esse entendimento se torna mais árduo quando mais uma vez uma das mulheres nos relata a morte de seu filho ao reagir a um assalto e a atriz que interpreta a história não é uma atriz tão conhecida no cenário do mercado brasileiro.

Historicamente o cinema viveu várias fases, movimentos e processos de evolução - fosse técnica, narrativa ou estilística. Com o passar dos anos nos acostumamos a classificar os filmes dentro do seus gêneros, fosse o drama, a comédia, a ficção ou o documental. É em Jogo de Cena que Eduardo Coutinho aponta para o que hoje há de mais contemporâneo na estrutura narrativa (não levando em conta o que já se era feito inconscientemente em obras anteriores). O universo híbrido que nos mergulha em um mar de incertezas e brinca com as verdades estabelecidas no cinema, no teatro, ou na ficção. Ou talvez seja uma forma de apontar o quanto o real é frágil, assim como a representação para um espectador que pode se afastar completamente de uma história contada se ali não existe uma certa veracidade em relação ao tom que o filme traz.

Fernanda Torres faz a seguinte afirmação enquanto analisa o processo: “A diferença é que com o personagem fictício, se você atinge um nível medíocre você pode até ficar ali nele, porque ele é da sua medida. Com o personagem real, a realidade esfrega na sua cara onde você poderia estar e você não chegou.” É através dessa afirmação que podemos ver o quanto estamos habituados com a separação nítida do real e da ficção, quando na verdade um documentário nunca mostra a realidade, já que a presença da câmera nos coloca em estado de alerta, preparados para encenar para ela, seja com um relato real, seja através da nossa maior boa vontade em sermos verdadeiros.

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