terça-feira, 27 de março de 2012

Doze Homens e Uma Sentença / Sidney Lumet

O primeiro plano de Doze Homens e Uma Sentença é a forte imagem de um gigantesco Tribunal de Justiça. Em seguida a câmera nos leva para dentro desse espaço e acompanhamos diversas pessoas que o estão frequentando. Vemos a tensão em um homem que sai de dentro de uma sala enxugando seu suor; uma família feliz, que supostamente comemora a vitória em uma audiência. Uma absolvição talvez. Até que entramos na sala onde o Juiz pede para que para que os jurados se reúnam e definam o veredicto, por unanimidade, do caso de um jovem que matou o pai.

Depois dessa curta, porem precisa sequência de abertura, os 12 jurados dirigem-se para uma sala onde são literalmente trancados por um guarda e começam a fazer a votação para decidir o destino do jovem acusado. É nesse limitado espaço cênico onde todo o enredo do filme se desenvolve e é quando um dos doze jurados contradiz o que pareceria ser unânime, dando seu voto para “não culpado”.

Os personagens são arquétipos da sociedade norte-americana e a leitura de suas funções é inúmera: o publicitário, o arquiteto, o bancário, o empresário e etc. Mas quem mais chama a atenção entre todos esses personagens é o senhor mais velho. O arquiteto é o primeiro a votar “inocente”, criando toda a confusão e instigando o diálogo entre todos, mas é na figura do “ancião” que o diretor Sidney Lumet demonstra sua destreza e domínio da linguagem cinematográfica.

Não somente por ser o personagem ignorado e desrespeitado pelos outros (que por um outro lado é também o que consegue persuadir os outros jurados), é aquele que está presente nos planos mais expressivos do filme. Como nos closes do seu rosto todas as vezes que ele expressa em seu discurso uma espécie de epifania ou conclusão. A posição da câmera enaltece sua figura, permitindo que ali talvez seja lida sua experiência de vida, ou o entendimento do sofrimento alheio.

Não estamos tratando de um simples filme descartável (é comum dizer isso quando falamos do cinema estadunidense). É nítido que Sidney Lumet, mesmo tendo sua formação através do teatro e da televisão, consegue enxergar o que difere na linguagem entre essas mídias. O cinema por se tratar da sétima arte e ter a fama de absorver as outras artes para sua linguagem precisou ser explorado e que se encontrasse a sua autonomia. É nessa autonomia que o cinema encontrou a sua encenação.

Sim, o teatro também é uma linguagem que necessita da encenação para sua realização, mas a partir do momento em que a câmera está presente, é como um dever do diretor ter a consciência de que ela faz parte dessa encenação. Parece óbvio apontar a presença da câmera como fator que difere as linguagens, mas é essa consciência que diferem os diretores de cinema, não em uma questão qualitativa, mas sob a ótica da exploração da linguagem em questão.

Robert Bresson, um dos diretores mais importantes na exploração da linguagem cinematográfica, possui a seguinte frase: “Torna visível aquilo que, sem você, nunca seria visto.” Dentro de seus diversos pensamentos sobre o cinema, é muito frequente a questão do papel da câmera em um filme. Veja por exemplo quando, em uma das sequências mais emblemáticas de Doze Homens e Uma Sentença, um dos jurados dispara seus pensamentos preconceituosos e todos os outros vão se afastando consequentemente, um a um, inclusive a câmera, lentamente.

É nesse aspecto que a câmera narra visualmente, não trazendo elementos palpáveis e verdades absolutas, mas uma narrativa mais abstrata, que permite a nós espectadores explorarmos o que talvez fosse a proposta moral do filme (a câmera como um décimo terceiro jurado? o diretor que também julga aquele valor ético do homem que dispara os preconceitos?) É essa a possibilidade infinita do cinema que muitas vezes diz muito sem dizer nada.

A partir do momento que possuo todos esses recortes através do olhar dessa câmera e que esse olhar se desloca dentro do pequeno espaço cênico onde todos estão trancafiados, jamais se poderia afirmar que Doze Homens e Uma Sentença é um filme teatral, mesmo que a tentação seja grande. Dizer que um filme é teatral, além da forte carga pejorativa agregada, seria afirmar que essa câmera não possuiria nenhuma “habilidade” dentro do espaço cênico e que nós espectadores seriamos posicionados a todo o momento na mesma posição que uma plateia de teatro. O que acontece dentro da pequena sala dos jurados é totalmente o contrário. É o cinema em seu estado puro e absoluto.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Jogo de Cena / Eduardo Coutinho

Cada história contada tem um elemento ficcional muito forte. É impossível não ter um elemento ficcional.


A primeira mulher a ser entrevistada no filme de Eduardo Coutinho é uma jovem que começa narrando sobre a vontade que ela sempre teve de ser atriz. Mas a maneira como a jovem, atriz, personagem ou entrevistada, projeta sua voz para o diretor que está atrás da câmera é uma forma muito próxima da interpretação teatral, a forma que alguns diriam ser exagerada, forçada para ser ouvida. Nessa primeira sequência (julgando que seja possível identificar as unidades fílmicas em Jogo de Cena) já somos apresentado a esse jogo proposto no título.

Um anúncio em um jornal informava a convocação de mulheres para contarem suas histórias de vida. Não se discute o que motivou essas mulheres a se abrirem em frente a câmera, mas após passarem por um processo de seleção, recontaram a história na frente do diretor e de uma câmera, sendo interrompidas por perguntas e indagações frequentes. Todos esses “fragmentos de realidade” foram registrados pela câmera que pouco se manifesta, variando entre closes e plano médio, as vezes se afastando suficientemente para indicar a figura ali presente do diretor e outras para acompanhar as mulheres até a cadeira armada sobre um palco de um teatro e frente a essa câmera.

O passo seguinte foi o convite às atrizes que viessem ao mesmo lugar onde foram feitas as entrevistas e que essas atrizes relessem as histórias reais contadas, sem muita interferência do diretor. Daqueles “fragmentos de realidade” passamos agora ao universo da encenação e, talvez, não especificamente a encenação cinematográfica ou teatral, mas ao processo de transmutação do que se diz real para a dramaturgia.

Esse efeito é nítido logo no começo do filme, enquanto a estrutura permite identificarmos quem está contanto um fato de sua vida e quem o está interpretando. Isso se torna claro não somente por reconhecemos com facilidade quem é atriz ou não, mas temos indícios, ao compararmos duas pessoas que contam a mesma história, quem passou pelo processo de leitura e preparação prévia do texto e quem supostamente não.

No decorrer do filme essa estrutura quase didática vai se perdendo, como a história da mulher que teve relações sexuais em um ponto de ônibus e engravidou. Pelos trejeitos, pela forma de falar, pela vestimenta e até mesmo pelo preconceito de nós espectadores, logo julgamos e temos quase certeza que aquela quem nos conta está história é a real pessoa que a vivenciou. Não temos uma atriz que ao longo dessa narrativa contraponha nossa certeza, mas logo somos surpreendidos pela própria mulher que olha para a câmera e diz “e foi isso que ela disse”.

Nesse momento do filme não estamos mais pisando em um chão firme e nos permitindo fazer afirmações. A realidade e a ficção já se fundiram e o didatismo já não está mais presente para nos auxiliar no entendimento do todo. E esse entendimento se torna mais árduo quando mais uma vez uma das mulheres nos relata a morte de seu filho ao reagir a um assalto e a atriz que interpreta a história não é uma atriz tão conhecida no cenário do mercado brasileiro.

Historicamente o cinema viveu várias fases, movimentos e processos de evolução - fosse técnica, narrativa ou estilística. Com o passar dos anos nos acostumamos a classificar os filmes dentro do seus gêneros, fosse o drama, a comédia, a ficção ou o documental. É em Jogo de Cena que Eduardo Coutinho aponta para o que hoje há de mais contemporâneo na estrutura narrativa (não levando em conta o que já se era feito inconscientemente em obras anteriores). O universo híbrido que nos mergulha em um mar de incertezas e brinca com as verdades estabelecidas no cinema, no teatro, ou na ficção. Ou talvez seja uma forma de apontar o quanto o real é frágil, assim como a representação para um espectador que pode se afastar completamente de uma história contada se ali não existe uma certa veracidade em relação ao tom que o filme traz.

Fernanda Torres faz a seguinte afirmação enquanto analisa o processo: “A diferença é que com o personagem fictício, se você atinge um nível medíocre você pode até ficar ali nele, porque ele é da sua medida. Com o personagem real, a realidade esfrega na sua cara onde você poderia estar e você não chegou.” É através dessa afirmação que podemos ver o quanto estamos habituados com a separação nítida do real e da ficção, quando na verdade um documentário nunca mostra a realidade, já que a presença da câmera nos coloca em estado de alerta, preparados para encenar para ela, seja com um relato real, seja através da nossa maior boa vontade em sermos verdadeiros.